Nos carris da memória.
O cheiro intenso pela manhã. É o que mais recordo ainda passados tantos anos.
O frenesim das pessoas, de malas e corações cheios. O fumo que se avista ao longe. O barulho compassado, que se aproxima que nem cavalo mecânico a galope certo.
Degraus enormes para alcançar o interior da máquina, que com o empurrão do avô se tornam meras lombas de excitação para o que se segue: a escolha aleatória de lugares, onde todos correm para as janelas, evitando a todo o custo os lugares das "arrecuas", que se juravam causar má disposição e "fazia a vida andar p'ra trás", diz alguém em todas as viagens. Só muito mais tarde percebi o que queriam dizer com aquela expressão tão sintomática do que vivemos.
O respeitável "pica", de cara fechada para quem apresentava os bilhetes, sempre de horários e ligações na ponta da língua. Nada de pés nos bancos nem brincadeiras na casa de banho, ok meninos?
Mas andar de comboio envolve tantas mais coisas. Admiram-se paisagens e paragens. Gostava de contemplar aqueles quadros berrantes de vidas a acontecer em cada estação, como se estivesse num museu em perpétuo movimento.
Lanches fartos, em que a partilha entre famílias viajantes se regava com vinho para os graúdos, groselha para os miúdos e gargalhadas de todos, celebrando novas amizades.
Ontem voltei à estação. Despida da vida do antigamente, resiste uma pequena máquina que teima em cruzar este nosso Alentejo. Devagar, atrasada e sem população no interior. Imagem do que aqui vivenciamos diariamente? Não sei. Eu só quero voltar a andar de comboio, que me leve a esse passado cheio de memórias felizes.