A Cruz Vermelha dos Assentos.
Cinco anos. Quase no bloco em frente do monte de pedras em que mais tarde surgiria o Centro Comercial dos Assentos, na cave esquerda, saía eu do meu pré-escolar, para onde ia bem cedo e saía o mais tarde possível, pois em casa havia já mais uma criança que não dava descanso à minha mãe. Ali vivi dois anos, com tudo a que tinha direito: refeições, ensinamentos, carinho, as minhas primeiras tentativas frustradas de tentar ter interações sociais, que como puto tímido e fechado, me custavam horrores, ao ponto de me provocarem mesmo dores físicas ( ainda hoje acontece).
Subia o lance de escadas em direção à porta, e fechava o meu olho direito, sinal de muito sol que me incomodava. O tique ainda hoje permanece. Virava à direita, iniciando a curta viagem até à Rua Luís Pathé, mesmo em passo pequeno. Sempre me mexi devagar, olhando, apreciando o que me rodeava, pensando de mim para mim a razão das coisas. E olhando para a esquerda, duas portas sempre me chamaram a atenção. Em chapa cinzenta, taciturna, parecia encerrar na minha mente os mais variados horrores que uma cabeça como a minha poderia pensar.
A curiosidade aumentava a cada passagem, vendo sempre um corropio de pessoas a entrar e a sair, chegando tristes e de cabeça em baixo, de mal com a vida, com o peso de um mundo duro e injusto nas costas trabalhadoras, e saindo com um sorriso decidido, com um aperto de coração mais aliviado e com um abraço à porta em jeito de felicidade vestida de batina branca.
Mas o que se passaria ali? Eu já tinha visto gente de seringas em mão... Será que injetavam alguma droga nas pessoas? O que faziam ali? Eu tinha que saber. E engendrei um plano: esperaria pacientemente pela próxima queda mais que próxima de arranhão nos joelhos, iria cobrir a ferida e as dores para me dirigir à "casa da cruz vermelha". E assim foi. Dois dias depois, raspei com ambos os joelhos a perseguir a bola, sempre a bola. chorei sozinho, o suficiente para deixar que os nervos e o mimo não correpondido não tomassem conta de mim e que me fariam berrar até alguém dar conta do meu suplício.
Era hora de ir embora. subi as escadas a custo, tentando dobrar o menos possível os joelhos em ferida, fechei o olho direito e toquei no peito de modo a sossegar o coração acelerado. Cheguei em frente das portas cinzentas, semiabertas. Espreitei... E chorei. Deixei correr todas as dores que me inundavam há anos pelas duas fontes verdes na minha cara. Deixei sair tudo: as dores das pernas, o mano que ocupou o meu lugar, os pais que viviam com dificuldades... Perdi a noção do tempo, não sei quanto tempo estive prostrado a derreter as minhas dores físicas e de alma. Saiu tudo. E quando consegui abrir o olho esquerdo, agora inchado do "meltdown" total, vi uma das tais batinas brancas, que me envolveu num abraço total, fazendo-me desaparecer dentro daquele gesto. E senti-me a levitar. Um abraço puro, sem perguntas, sem julgamentos.
Percebi depois rapidamente o que se passava ali, quando consegui sair deste estado de leveza: a "casa da cruz vermelha" era uma fábrica de amor. Vi ser distribuída comida em sacos verdes de venda de rua. Observei enquanto uma menina, mais pequena que eu, era atendida por um operário que lhe tirava a febre, nos braços dum pai preocupado. Vi ainda gente que conversava serenamente, parecendo dar alento a quem claramente precisava dele. Vi também gente a ser transportada em ambulâncias para o hospital, sempre acompanhadas pela mão. Ah, e é claro que me aplicaram dois belos remendos nos meus joelhos esfolados.
Muitos anos se passaram. Nunca mais entrei na fábrica de portas cinzentas e pouco convidativas. Mas quero acreditar que muito amor ainda é por lá passado a quem precisa de ajuda. Ou somente de um abraço.