E se...?
Façamos um pequeno exercício de pensamento rápido. Recuemos dez, vinte, trinta, quarenta voltas ao imaculado Sol que irradia vida. Recuemos os que forem precisos. Larguem as vossas carcaças cheias de vícios e cansadas da mortalidade que tarda mas não falha. Vão haver apenas perguntas, as respostas serão vossas, pessoais e sempre transmissíveis, para os mais dados a conversas de um passado que tanto parece incomodar e aborrecer os mais novos, que sabem tudo no meio da sua eternidade fingida. Que importância terão mesmo as coisas pequeninas? E serão elas tão pequenas assim? Começamos?
E se...?
E se a vossa avó não vos tivesse feito os pequenos almoços feitos de pão e leite quente, tal como o coração que vos aquece agora a pensar nela? Seriam vocês ainda hoje construídos em partes iguais de falhas e carinho para dar? Seriam os vossos amores-perfeitos, ímanes recetores de energia positiva que vos alimentam com algo bem mais preenchedor que comida?
E se não fossem repreendidos e castigados, seja de lambada, chinelo e vassourada em tempos que insistiam em não perceber o mal que as coisas más fazem? Teriam crescido justos, com sentimento de que a experiência traz cabelos brancos mas também respeito de quem ainda luta para se pôr de pé? A palavra rude no tempo certo fez-vos evoluir para um ser humano eternamente de lágrima no canto do olho, ou para alguém que entende perfeitamente o conceito de amor duro?
E se aquele primeiro beijinho, de olhos fechados e de coração escancarado, tão puro e inocente de mundos cheios de egoísmo e negatividade, fosse mesmo o primeiro contacto com o amor que se cria com o estranho, com duas almas diferentes que se fundem numa só coisa melhor que todas as coisas...?
E se aquele primeiro pontapé na bola de sapato rasgado não fosse o veículo condutor para quem acaba por crescer de ti e contigo? Se não fosse daqueles meninos franzinos e de olhar envergonhado, que corriam e gritavam ao teu lado, que iriam nascer as mais bonitas amizades que levas deste percurso curto de viver para morrer? Como seria essa infância, de cara grudada na janela, esperando por uma aberta de sol que iluminaria as pedras e o alcatrão do teu/meu/nosso campo de futebol?
Voltemos ao nosso fado de hoje. E então? Haverá quem possa menosprezar o que foi vivido? A sua influência no que nos transformamos hoje com orgulho e naquilo que sempre nos negamos a ser?
Na dúvida, na incerteza, no medo, na insegurança, voltemos a ser aquilo que já não poderemos ser. Nem que seja por momentos. E teremos sempre orgulho naquilo que representamos para quem gosta de nós. Pisquem o olho àquele menino ou menina que ficou lá atrás e abracem aqueles que vos fizeram assim. Não deixem que eles partam antes de o fazer, para que eles possam sentir o bem que fizeram a essas crianças viradas gente grande.