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Há Em Nós Qualquer Coisa

Vidas de 400 palavras.

Há Em Nós Qualquer Coisa

Vidas de 400 palavras.

A 3ª Paragem.

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No início da década de 90, época de roupas extravagantes e de gosto duvidoso, da explosão do "techno" e da malograda hegemonia do FCP no futebol português, os dias começavam rápidos e cheios de barafunda matinal. Entre pequenos-almoços tomados à pressa, ramelas retiradas pelo cuspo maternal e gritos de alerta pela pontualidade britânica do autocarro das 8h20 que me levaria diretamente para a Escola Industrial, tudo acontecia rapidamente.

A Rua Luís Pathé era percorrida em ritmos diferentes até ao ponto de encontro no fim da rua: os dias em que era possível esperar pelo vizinho mais atrasado, morando no andar de cima, com a falta de complacência que só os adolescentes têm; ou então em modo Carl Lewis contra Linford Christie, naqueles 100 metros que separavam o Bloco 6 do autocarro que, esperançados, tenha tido um qualquer atraso vindo da paragem anterior. Almas atrasadas caídas do céu.

Nos dias em que parecia ter caído da cama, ou quando já tinha vindo noutro transporte público da Urra, depois de fim de semana de mimos, jogos de consola e futebol e comezaina farta, tinha tempo para fitar as pessoas, observá-las, reparar nos seus trejeitos, tentando sempre imaginar o que se passaria nas suas cabeças. Há pessoas que ainda hoje, vinte anos depois, recordo daquelas passagens fugazes mas ricas, sustentadas em anos de esperas.

Havia a senhora L, sempre cheia de sacos, com um ar atarefado e constrangido. Será que o conteúdo dos sacos era ilícito? Mas ela era senhora de tão boas famílias, tinha um filho a estudar em Lisboa... Anos a encontrá-la naquele ponto de abrigo de chuva e sol, e nunca consegui sequer um vislumbre do interior de um daqueles sacos cheios de mistério e intriga para mim.

A menina M, que fazia os rapazes como eu suspirar. Era um pouco mais velha, quase mulher feita, que quando se aproximava da paragem todo o mundo desacelerava e se centrava no seu cabelo longo ao vento, no seu sorriso sempre rasgado. Nunca lhe conheci outra forma. Sempre aperaltada e parecendo realmente feliz. Mas a dúvida na minha cabeça permanecia. Seria realmente feliz, realizada, ou insistia em sorrir ao mundo para que o mundo fosse obrigado a sorrir-lhe de volta?

O velho A, sentado "ad eternum" nos bancos corridos que cobriam a velha estrutura de metal. Parecia que lá vivia, conhecendo toda a gente que por lá esperava por transporte, sempre em amena cavaqueira com os vizinhos que éramos todos nós no nosso bairro. De bafo forte a vinho, seja a que hora fosse, o A encontrava felicidade no conforto dos outros, nem que fosse por uma mera troca de palavras. Nunca lhe conheci família, e prostrava-se a um silêncio de corpo quando o autocarro saía em direção à cidade. Fechava-se sobre si mesmo, voltando a desabrochar logo que alguém chegava à paragem. Lembro-me de o olhar do fundo dos bancos, enquanto nos afastávamos. Seria aquela a sua alegria de viver? Será que esperava para o resto da vida alguém que iria chegar num autocarro, nunca deixando de acreditar?

E muitas outras pessoas foram historiadas por mim ao longo de anos de espera pela carruagem mecanizada. Pergunto-me ainda hoje o que será feito dessas pessoas. E se os meus destinos fantasiados seriam assim tão diferentes das realidades.

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