Amor de cimento.
Imaginem que têm um móvel. De pequenas gavetas, onde tudo tem que ser sempre muito bem arrumado, pois o espaço limitado define o que podem ou não ter. Agora definam que cada gaveta tem algo diferente. A organização é vossa, da vossa gaveta. Mas todas as outras gavetas estão cheias de outras coisas, que não vos pertencem e que, obviamente, desconhecem. Estranham. Pensam em despejar a vossa gaveta e talvez arranjarem um armário só para vocês. Mas o material de arrumação está caro e isso não é uma opção viável para vocês nos próximos cinquenta anos.
Analogia parva? Talvez. Mas para mim isto capta um pouco da essência do que é viver num prédio.
Nunca conheci outra realidade. A vida a partir do momento de que me lembro sempre aconteceu no segundo esquerdo da última rua dos Assentos.
Acordar com o despertador do vizinho de cima, tentar adormecer com os gritos de discussão acesa no andar de baixo. Viver verdadeiramente em comunidade.
A chávena de farinha ou açúcar que se pedia descendo ou subindo as escadas. Os odores que emanavam e invadiam o prédio vindos da gaveta no rés-do chão, a erva doce das broas e as frituras das azevias. O vizinho que se temia, não por ter feito algo que nos fazia pensar assim, mas porque pensava o mesmo que nós, por não se dar a conhecer, vivendo numa varanda ou por trás de uma janela, desejando estar ali connosco, num dos inúmeros jogos de bola.
Os tijolos que dividiam cada diminuto espaço familiar abriam-se para manhãs de jogos em consolas velhas em manhãs de chuva nos fins de semana de escola, em jogos de cartas em vãos de escadas, que eram o mais fresco que se encontrava no verão tórrido do bairro.
As conversas de varanda para janela, quando a melhor rede social envolvia a presença de todos os intervenientes. Os fios com balde que passavam informação, bebidas frescas e animação, para cima e para baixo dos varandins onde se vivia a partir das nove da noite, pois a televisão tinha dois canais e as mães não abdicavam da Porcina e do Zeca Diabo...
Tantas outras memórias ficarão certamente por contar em cada uma destas gavetinhas cheias de pessoas e histórias. E não serão esquecidas. Porque o que as une é tão forte como o cimento que as constrói: amizade e amor.